
Aventura
Havia muito ruído, quando se encontraram. Outras vozes - gritos, inclusive. Barulhos de fundo que filtro de linha nenhum limparia. Conheceram-se em meio a esta balbúrdia. Levou um ano para que se falassem frente a frente e, ainda então, as outras vozes e gritos eram altos demais para que ele a ouvisse. Mais alguns anos se passariam até que pudessem conversar a sós e em silêncio. Enquanto não conversavam, puseram-se a fazer coisas juntos. Coisas variadas, com muita gente: bonitas, perigosas. Iam fazendo coisas e sendo cúmplices nesse fazer, dividindo o balanço de cada dia de aventura. Cresceu um carinho. Do papo sobre a faina do dia surgiu, devagarinho, aquela conversa a sós. Aos poucos ele percebeu que a ouvia, que não havia mais vozes, e que a amava.
Desencontros
A primeira grande trombada foi no apartamento da Augusta. Ele havia voltado para encontrá-la antes que ela partisse para a Europa, viagem sem prazo de retorno. Atropelava tudo para poder estar com ela naquela noite, mas ela não veio. Apareceu madrugadinha, cara lavada, encabulada.
Tinha passado a noite com o outro. Ele trepidava, injuriado, ferido, mas enlouquecido pelo amor e pela saudade que sabia que teria. Pediu-lhe desculpas antes, e deu-lhe um tapa no rosto. Abraçaram-se e choraram. Declararam seu amor. Ela se foi e ficaram um ano sem se ver.
......
Madrugada, um apartamento em Paris. Hospedados na casa dos amigos, os dois sentam-se à mesa da cozinha para conversar. Não está dando certo. Tanta antecipação e ansiedade não prepararam um encontro alegre. Estão ranhetas, briguentos, cobrando-se.
Ela conta que está (na)morando com outra pessoa. Uma menina. Ele olha para ela, sem surpresa. Pergunta-lhe, a voz embargada, por que não conseguem viver aquele amor em paz. Ela olha pra ele, os olhos também marejados. Diz que não sabe. Apóiam as testas um no outro, e choram em silêncio. São cúmplices, enfim na noite e na dor.
......
A última trombada é quase engraçada. Ele vai visitá-la no norte, passaram-se anos depois de Paris, já moraram juntos, já estão separados de novo, ele quer saber se ainda existem. Atravessa o país e hospeda-se na casa dela, dividem a mesma rede. Os corpos não se encaixam, e de novo o clima é estranho. Ele pede: “Pode contar”. E ela conta: um alemão que voa de asa delta.
Ele diz pra ela que sonhou que ela morrera, e que amanheceu chorando. Ela parece aliviada com tudo: são bons amigos, não? Ele passeia a esmo pelas ruas, entre as mangueiras. Escreve um texto sobre um menino de rua que o vê – marmanjo – abatido no ônibus e sente que se identifica com ele, ambos abandonados. Despedem-se sem drama, não deu certo, tradição no ramo dos tecidos. “A gente se vê por aí”.
.......
Ela chegou com a filhinha, de uns dois anos, que ficou brincando no chão da sala enquanto conversavam. Contou-lhe que outro dia, numa lanchonete árabe, ouvira uma música que lembrara dos dois. Ele olhava para a menina-lua e para ela, para o jeito sem graça dos dois. Ouvia a estória e sentia a tristeza na sala, uma tristeza que quase dava pra tocar.
Ela seguiu contando da emoção que sentira ao ouvir aquela música, como se lembrava daquela estória louca entre eles e como decidira que precisava lhe fazer aquela visita. Uma visita pra dizer que, dentre todos e todas, ele havia sido o grande amor da vida dela. Ele não conseguiu encará-la, ficou olhando a menina no chão. Falaram mais um pouco daqueles dez anos, dos desencontros, do hilário. Despediram-se com um beijo no rosto. Foi a última vez que se viram.
( fred weizman)
imagem de stranger than paradise. de jarmusch.
2 comentários:
putz grila!
soh li "desencontros".
ai meu deus!
chega!
o gordinho ficou angustiado com os meus posts?
=***
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