
Por vezes li em artigos e entrevistas, ouvi pessoas falarem acerca dos filmes de François Truffaut e sempre me chamou a atenção o fato de que estes quase sempre são destacados como filmes que falam do amor. Mas de que amor eles falam?
Esse aspecto toma pra si um bocado do meu tempo por diversos fatores: como uma pessoa que quando criança foi abandonada pela jovem mãe, criado por uma ama-de-leite e depois por seus avós maternos, passando de mão em mão, de uma escola para outra, colônias de férias, instituições correcionais, que teve amores não correspondidos na juventude, ficado preso e distante de seus amigos, únicas pessoas que lhe dedicavam atenção e carinho; pôde sentir tanta necessidade de falar do amor? E minhas reflexões me fazem pensar que foi justamente a tão presente ausência de práticas amorosas no seu cotidiano infantil e juvenil que o despertou para tal tema. Não que não sentisse o amor, mas por sentir por tantas vezes a falta do mesmo nas outras pessoas.
Penso também que essas questões envolvem discussões maiores acerca do que a nossa sociedade, moderna (pós-moderna, hiper-moderna...), construiu como valores de afeição; seus conceitos de amor, carinho; condutas de uma família normal, na qual a mãe assume o papel de educadora amorosa e dedicada, que deve amar seus filhos incondicionalmente, em que as crianças devem ser disciplinadas, educadas e respeitadoras dos bons costumes, e a felicidade se mostra como o principal objetivo de vida de cada um de nós.
Como muitas crianças de seu tempo, Truffaut viveu as angústias dessa sociedade, suas exigências e seus valores morais, e é isso que vemos nos seus filmes: a sociedade em que ele viveu, do jeito que ele a via, a vivenciava, a experimentava a cada dia.
Quando Truffaut decide filmar o seu primeiro longa-metragem em 1959, Os incompreendidos, ele opta por contar a história de Antoine, um adolescente rejeitado pela família, pela escola, pela sociedade, quase delinqüente, inquieto e rebelde, apaixonado por cinema e Balzac, que foge cotidianamente em busca de uma infância que não teve e de um amor que não recebeu, não sentiu. Um garoto que sonha em ver o mar e ter a sua liberdade, mesmo que quando a encontre não saiba muito bem o que fazer com ela. O filme ressalta, assim, as tensões que permeiam o seu cotidiano de fuga e negação da autoridade dos pais e dos professores presentes numa sociedade francesa da década de 50, que podem ser repensadas por nós hoje em dia em espaços diferentes, com algumas semelhanças.
Numa junção de metáforas, Os incompreendidos dar a ver e a pensar acerca da sociedade que Truffaut viveu na sua adolescência. Mais ainda, a sociedade das pessoas que estavam ali a ver seu filme: personagens como elas, espaços como os que estão habituados a ver e a vivenciar; com práticas, discursos e conceitos semelhantes aos delas. Eis nas telas a outra maneira de fazer cinema que os jovens diretores franceses estavam a propor com a Nouvelle Vague: um cinema francês.
O cinema foi pra Truffaut, assim como pra Antoine, uma fuga. Como se os filmes pudessem o transpor para uma outra realidade que não a sua. Amor este que foi despertado bem cedo e que foi tomando cada vez mais espaço na vida do diretor. Sua paixão pelo cinema se equivalia ao seu amor pela literatura, viu inúmeros filmes, alguns inúmeras vezes. Quando criança deixava de comer para comprar uma coleção completa de obras de Balzac, com a qual se deliciava em cada página e cada palavra. Seu gosto pela literatura também foi unida posteriormente ao cinema quando ele realizou uma série de filmes a partir de adaptações de obras literárias para o cinema: Jules e Jim, Atirem no pianista, Fahrenheit 451, A noiva estava de preto, A sereia do Mississipi e De repente num domingo, são só alguns deles.
Quando começa a participar dos cineclubes e cria o seu próprio cineclube com seu sempre amigo Robert, passa a conviver com outras pessoas apaixonadas por filmes, e, com as discussões tecidas nas sessões, ele vai aumentando cada dia mais seu conhecimento sobre filmes clássicos, filmes franceses, filmes americanos e ao mesmo tempo delineando claramente quais seus filmes e diretores prediletos, aos quais defendia obstinadamente. Bem como os que ele atacava com intensidade equivalente.
O cinema, assim, lhe permite uma outra fuga, não mais nas telas, mas nas revistas. Truffaut se destacou com suas críticas, sensibilizou André Bazin e melhorou suas condições de vida.
E quando ele começou a fazer cinema, este tomou uma dimensão ainda maior: um espaço para inventar suas próprias histórias, para dar a ver e a sentir suas angústias, seus questionamentos, seus anseios, as sensibilidades que envolviam as pessoas de seu tempo. Seja contando uma história de um adolescente delinqüente, a partir de uma revisita às suas memórias infantis; os conflitos de um homem “do fogo” que se nega a queimar livros numa sociedade em que ler é terminantemente proibido; as sensibilidades que envolvem o triângulo amoroso entre uma mulher, seu marido e o melhor amigo deste; uma viúva que busca vingar a morte do marido, Truffaut filma do seu lugar social, para a sua sociedade.
Sua vida e suas obras sempre se mantiveram intimamente ligados, com uma fronteira de separação entre esses espaços sempre fluida e inconsistente. Assim, seu amor pelo cinema, como tantos outros amores seus, literatura, mulheres, crianças, não poderiam deixar de fazer parte de seus filmes. Como já dissemos: filmes que falam de amor.
E quando eu penso em amor nas obras de Truffaut, penso nas suas diversas formas, variações, nas diferentes relações que podem ser permeadas pelo amor: a felicidade de senti-lo, a angústia de sua ausência, a sua negação; as atitudes de amor, entre amigos, familiares, amantes, pessoas que trabalham juntas, seja numa instituição pública ou num set de filmagem, a constante busca pelo amor, e pela felicidade, os sentimentos que permeiam todo esse trajeto de busca.
Acredito sim que Truffaut dar a ver e a sentir em seus filmes aspectos de sua sociedade cheia de conflitos de uma maneira sensível, e bela. E aí está o que para mim faz de suas obras tão preciosas não só para o cinema como também para cada um que se propõe a sentir seus filmes. O que eu sinto quando vejo e construo em minha mente um filme seu é que a sociedade para ele é permeada por relações entre pessoas, relações que proporcionam momentos de felicidade e de tristeza, e que estes sentimentos, sejam quais forem, sempre têm importância.
Truffaut escreveu em um de seus artigos pra revista Arts, em 1957, o que esperava dos filmes de amanhã: “O filme de amanhã não será realizado por funcionários da câmera, mas por artistas pra quem a realização de um filme constitui uma aventura formidável e exaltante. O filme de amanhã será parecido com quem o filmou, e o número de espectadores será proporcional ao número de amigos que o cineasta possui. O filme de amanhã será um ato de amor”.
Foi como se ele estivesse escrevendo um prólogo para sua obra cinematográfica.
Um comentário:
eu jah li uma vez.
"o filme de amanhã será um ato de amor." isso eh bonito d+.
=***
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